Era uma vez um Tabuleiro de Xadrez.
E dois Meninos também eram uma vez.
Estiveram todo o dia a brincar os dois
com Reis, Rainhas, Bispos e Peões.
Sentados frente a frente, diante do Tabuleiro,
cada um comandava um exército inteiro
de Peças de madeira lutando ferozmente
como se, em vez de Peças, fossem gente.
Todo o dia jogaram o fero jogo
pondo Peças e Tabuleiro a ferro e fogo.
Até que se fizeram horas de deitar
e se foram os dois deitar sem acabar
a Guerra de brincar que começaram.
Mas as Peças sozinhas continuaram,
às escuras, no quarto, a guerrear,
a pelejar, a batalhar, a combater,
lutando umas com as outras sem saber
que os Generais já estavam a sonhar…
Uma Guerra confusa começou então
a travar-se no meio da escuridão.
Alguns Peões brigavam, outros conversavam,
um Bispo aprisionou um Cavaleiro
e jogavam os dois as cartas e lanchavam
sentados a um canto do Tabuleiro.
Outro Cavaleiro, quando o obrigaram
a montar, caíra do cavalo
e como tinha fugido e o apanharam
deram-no como desertor e iam fuzilá-lo.
Com os Generais pegados num sono profundo
o Conflito alastrou pelo resto do Mundo,
e entraram na peleja bonecos e ursinhos,
soldados de chumbo, bolas, cavalinhos…
A Rainha fazia o que lhe apetecia,
um Sempre-Em-Pé, deitado, fingia de morto,
o Rei andava de um lado para o outro
a dar ordens que ninguém cumpria…
E se as Peças do Xadrez tivessem querer,
se fossem capazes de sentir e de sofrer,
se tivessem coração à sua maneira,
uma vontade de tinta, uma alma de madeira?
Se o Rei reinasse, se a rainha rainhasse,
se o Bispo intrigasse e rezasse?
Pode muito bem assim suceder
sem elas saberem nem ninguém saber.
E o jogo do Xadrez ser uma vida
de uma maneira de madeira vivida
por gente para quem o Mundo inteiro
são as Casas pretas e brancas do Tabuleiro…
Manuel António Pina (1943-2012)
História com reis, rainhas, bobos, bombeiros e galinhas e A guerra do tabuleiro de xadrez, 1984
Crédito https://pt.scribd.com/doc/296509589/Provas-Modelo-LP6